AMARÍLIS LAGE
da Folha de S.Paulo
da Folha de S.Paulo
À primeira vista, o inglês Daniel Tammet, 28, parece um jovem comum. É fã dos Beatles, gosta de viajar e de namorar, tem uma escola de idiomas que garante sua independência financeira e sabe cozinhar.
Mas Daniel não é comum. E o que o torna extraordinário é justamente a capacidade de realizar todas essas atividades, aparentemente simples. Daniel é autista e tem a rara síndrome de savant, um distúrbio psíquico que confere a seus portadores memória prodigiosa e genialidade em cálculos, mas que, geralmente, os condena a uma incapacidade de interagir com os outros.
O caso mais famoso da síndrome é o do norte-americano Kim Peek, que inspirou o personagem Raymond Babbit, interpretado por Dustin Hoffman no filme "Rain Man" (1988). Assim como a maioria dos savants, Kim também tem autismo. Ele aprendeu a ler aos 16 meses de idade e consegue ler duas páginas de um livro simultaneamente, retendo quase 100% das informações --memorizou todo o conteúdo de mais de 9.000 livros.
Aos 56 anos, porém, ele depende dos cuidados do pai em tempo integral para sobreviver.
Daniel, inexplicavelmente, conseguiu superar essas barreiras. Sua independência e sua capacidade de comunicação o transformaram em um valioso "dicionário" da síndrome de savant para neurocientistas. Se os savants fazem cálculos complexos em segundos, Daniel vai além e explica como consegue fazer isso.
Cada número, diz, corresponde, em sua mente, a uma cor, textura, formato ou sentimento: o número um, por exemplo, é como um feixe de luz, já o cinco tem som de trovoada --reação conhecida como sinestesia. Ao fazer uma conta, essas cores e sons se misturam, e o resultado aparece diante de seus olhos, como uma nova imagem.
O mecanismo também o ajuda a decorar informações longas: é dele, por exemplo, o recorde europeu de memorização do pi --um número que corresponde à divisão da circunferência pelo diâmetro de um círculo. O pi começa com 3,1416 e segue infinitamente. Em março de 2004, Daniel passou cinco horas e nove minutos recitando o número: foram 22.514 dígitos, acompanhados por jurados que conferiam a seqüência correta em centenas de páginas de papel.
Para o jovem savant, a tarefa equivalia a se lembrar de uma paisagem: só que, em vez de árvores, casas e riachos, ele via algarismos.
Após a proeza, veio a fama. Um canal de televisão inglês realizou um documentário sobre sua vida ("The Boy with the Incredible Brain" --o garoto com o cérebro incrível), e Daniel resolveu contar suas experiências em um livro: "Nascido em um Dia Azul", que acaba de ser lançado no Brasil.
"Escrever o livro foi terapêutico", disse Daniel à Folha, por telefone, de sua casa em Kent, no sudeste da Inglaterra. "Isso realmente me ajudou a ter uma melhor compreensão de quem sou, da vida que tenho, da jornada que fiz. O diagnóstico da síndrome de Asperger [um tipo de autismo] não foi feito até 2004 porque, quando eu era criança, não estava disponível. Escrevi o livro um ano depois e isso me ajudou a colocar minha vida numa perspectiva, num contexto."
Sua voz é suave e ele se mostra gentil e amigável durante a entrevista. Estabelecer uma conversa com desconhecidos, porém, foi algo extremamente difícil para ele ao longo de muitos anos. Daniel foi uma criança quieta e sem amigos.
Na escola, passava o recreio sozinho, contando as pedras no chão ou fazendo contas. Não se interessava por outras crianças e, quando elas zombavam dele, apenas tapava os ouvidos e tentava pensar em números que evocassem imagens bonitas.
Foi na adolescência que ele começou a sentir necessidade de se relacionar com os outros. Mas essa interação lhe parecia muito complexa: as pessoas eram imprevisíveis demais para um garoto que buscava lógica e padrões matemáticos em tudo.
Numa conversa, podiam mudar de assunto de uma hora para a outra e esperavam que ele entendesse coisas que não eram ditas claramente. Isso o deixava inseguro e frustrado.
"Pessoas com autismo acham importante ter rotina, segurança, estabilidade. O mundo é hiperestimulante porque tem tanta gente, tanto barulho, tanta informação... Autistas têm mais dificuldade para lidar com isso. A rotina deixa tudo mais fácil. Por isso, tento tomar o mesmo café da manhã todos os dias. É um pequeno ritual que me faz sentir seguro", conta ele, que come exatamente 45 gramas de mingau todas as manhãs. E usa uma balança eletrônica para ter certeza disso.
Para enfrentar essas limitações, Daniel --que, quando bebê, chorava se o pai mudasse o caminho para a creche-- resolveu se mudar para a Lituânia, na Europa báltica, onde trabalhou por um ano como professor voluntário de inglês.
Além de aprender a lidar com situações imprevistas, ele descobriu mais uma aptidão: a facilidade para idiomas. Para Daniel, os sons também evocam cores e sensações (as palavras que começam com "t" são laranjas, por exemplo), e isso o ajudou a aprender dez línguas de forma autodidata.
Divisor de águas
A viagem à Lituânia, diz Daniel, foi um "divisor de águas", que o preparou para o que veio depois. "O documentário e o livro mudaram minha vida. Ninguém imaginava quão bem-sucedidos eles seriam. Tenho tido a oportunidade de viajar muito. Há poucos anos, consideraria isso inimaginável. Mas tenho crescido muito em autoconfiança. Recentemente dei uma série de palestras nos EUA onde havia milhares de pessoas. E, ainda assim, não foi difícil ficar em pé e falar, pois adoro compartilhar minha história."
Daniel atribui o sucesso do livro, já traduzido para 16 idiomas, ao fato de muitas pessoas, mesmo sem autismo, compartilharem com ele essa sensação de deslocamento em suas comunidades. "Elas se identificam. São, de alguma forma, diferentes de outras pessoas, com dificuldade para aprender qual é seu lugar no mundo. Meu livro parece significar algo para essas pessoas", diz ele, que agora se dedica ao seu segundo livro, sobre inteligência, memória e aprendizagem.
Além da carreira, a vida pessoal também vai muito bem, obrigado. Há alguns anos, Daniel mora com o companheiro, Neil --"que é bonito como o número 11". E como lidar com algo tão imprevisível e fora de padrões lógicos?
"O amor era uma grande questão para mim. Eu não era capaz nem de pensar sobre esse tema quando era adolescente --lia tudo que podia sobre isso. Uma coisa que me ajudou foram os contos de fadas, todos com lindas idéias sobre relacionamento, sobre como alguém pode se sentir confortável onde vive. Por meio dessas histórias, eu gradualmente me tornava hábil para entender o amor."
A resposta da equação, descobriu, era a aceitação. "Grande parte da nossa vida está fora de controle. Eu não escolhi ser autista, assim como não escolhi ser inglês. Então, eu tive de aprender como ser eu mesmo. E amar é uma parte importante disso, pois é sobre aceitação. Aceitação do outro e de si mesmo, assim como do mundo. Quando você aceita o mundo, você pode amá-lo, quando aceita as pessoas, pode amá-las. E, quando você se aceita, pode se amar também."
Pergunto o que ele faria se descobrissem uma cura para o autismo. Ele fica em silêncio por alguns instantes. "Acho que depende do tipo do autismo. Alguns autistas são como eu, capazes de ter um relacionamento, uma carreira. Mas há formas muito mais severas, que não permitem ter uma vida normal. Eu certamente espero que cientistas encontrem um modo de tratar essas formas de autismo, para que essas pessoas possam falar, ter amigos e ter a oportunidade de aceitar a si mesmas e ao mundo em volta delas. Meu autismo eu aprendi a aceitar. Se eu mudá-lo, mudarei a mim mesmo. E eu sou muito feliz. Eu gosto de mim."
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